5dez 2022
06:30 UTC
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Linguistas e a constituição da figura do especialista no discurso público: o caso da linguagem não-binária

O tema envolvendo a linguagem que mais recebe holofotes no debate público neste momento é, sem dúvidas, a linguagem não-binária. Há, em linhas gerais, posicionamentos que defendem iniciativas de emprego no português de terminações como @, x e -e, e posicionamentos contrários a essas iniciativas, questionando a efetiva neutralidade dessas terminações e advogando pela neutralidade do chamado masculino genérico. Neste trabalho, discutimos a constituição da figura do linguista-especialista nas matérias jornalísticas a esse respeito e a consequente circulação do discurso acadêmico no debate político, levando em consideração a apropriação das declarações de linguistas por parte de setores de orientação política conservadora.
Para tanto, partimos de dois textos publicados em portais de notícias. O primeiro texto é o artigo veiculado pelo jornal Gazeta do Povo em 14 de novembro de 2017, assinado por Andressa Muniz. Intitulado “Elx, el@s, todxs? Na língua portuguesa, sem gênero neutro: apenas masculino e feminino”, a matéria se apoia na análise de Camara Jr. e em declarações do professor Sírio Possenti, para afirmar que “segundo pesquisadores da área, usar o gênero masculino para se referir a um grupo de pessoas, homens e mulheres, não é uma forma de preconceito”. Esse argumento foi reapresentado pela própria Gazeta em 09 de setembro de 2020, quando se noticiou o “ensino de linguagem neutra” em uma escola de Recife, agora com a interpretação de que o emprego das formas neutras carece de cientificidade: “Os especialistas ressaltaram ainda que essas novas terminações que movimentos sociais pretendem acrescentar à língua portuguesa não tem amparo científico.”. A partir daí, o argumento chegou até o portal Gospel+ (15 de setembro de 2020), ressaltando que “linguistas reprovam neologismo”.
Argumentamos que a discussão sobre as marcações não-binárias chega ao debate político carregada de uma tensão cientificista, que, do ponto de vista dos linguistas parece ser orientada a partir de um conflito teórico (em linhas gerais, entre o estruturalismo e teorias discursivas ou funcionalistas). Contudo, a constituição de um linguista como especialista-autoridade no corpo de uma matéria jornalística se dá, em diversos casos, a partir da validação de um projeto de dizer já estabelecido pelo veículo de comunicação/pelo jornalista e não a partir de um compromisso com o modelo explicativo mais cientificamente adequado ou teoricamente consistente.
Considerando a impossibilidade de se desvincular a história da ciência das outras histórias, a partir de Latour (2016) e de Schiebinger (2001), concebemos que a trajetória do masculino genérico e a dos vieses conservadores se cruzam e recruzam e, assim, colocamos em questão os limites entre a ciência e o debate público.